O mundo vive hoje um período de desenvolvimento tecnológico e econômico sem precedentes, no qual tudo acontece em velocidade e eficiência jamais antes vistas. Isso provoca, obviamente, uma profunda transformação social. O que não deveria ser esquecido é que a tecnologia não é neutra. Apesar de ser fruto de algo matemático e objetivo, é preciso enxergá-la para além disso, especialmente no que se refere à sua interação com humanos, os que criam tecnologias e os que são afetados por elas; seu potencial de transformação, seja ele benéfico ou destrutivo sob diferentes pontos de vista; e a interação entre as diferentes tecnologias existentes.

O mesmo drone que possibilita a entrega de medicamentos em áreas de difícil acesso pode ser utilizado em ataques destrutivos em situações de guerra. Ou, ainda, robôs que possibilitam a automação de processos industriais podem tornar a operação mais segura e, ao mesmo tempo,  e acabar com a necessidade de determinadas profissões. Esses profissionais terão espaço em outras áreas? Como lidar com uma legião de desempregados?

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É, portanto, impossível definir se uma tecnologia é boa ou ruim. Depende do ponto de vista. Depende de quem foi afetado com os resultados. Depende a que(m) tem servido. A ambiguidade é enorme e ilimitada.

Nesse contexto, a atuação do Direito é fundamental. Em sua essência, o Direito é  uma maneira de tutelar a vida em sociedade, sofrendo modificações à medida em que a própria sociedade se altera, sobretudo quando novos processos econômicos e sociais são inseridos. No caso da influência da tecnologia,  não se tratam de processos graduais entre o velho e o novo – estamos falando de disrupção. A democratização da tecnologia traz infinitas novas oportunidades e, não sendo neutra, ela pode ser uma ameaça a prerrogativas legalmente estabelecidas. E é justamente nesse sentido que o Direito entra: deve ser sim incentivado o desenvolvimento tecnológico, inclusive considerando as oportunidades que trazem consigo; mas também é necessário equilibrar com a tutela de direitos fundamentais.

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Por vezes, para garantir essa tutela, testemunhamos a criação de legislações, a exemplo do General Data Protection Regulation (GDPR), na União Europeia, e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), no Brasil. Essas legislações não dizem respeito à regulação de alguma tecnologia específica, mas servem de pano de fundo para muitas formas de aplicação da tecnologia. Isto é, o equilíbrio entre fomento à inovação e desenvolvimento tecnológico junto à proteção dos cidadãos.

O exemplo de proteção de dados pessoais é interessante: a coleta, armazenamento e manipulação de dados é possível independentemente do uso da tecnologia. Sempre foi possível fazer tudo isso no mundo offline, mas sem o baixo custo, eficiência e velocidade trazidos pela automação e cruzamentos de dados por meio da tecnologia – daí a relação direta e importância entre tais legislações e o desenvolvimento tecnológico em si.

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O Projeto de Lei da Câmara 53/2018 foi aprovado pelo Senado Federal em 10 de Julho de 2018, consolidando-se como a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira. A LGPD é fruto de discussões iniciadas em 2010, por meio de uma consulta pública realizada pelo Ministério da Justiça.

Esse novo regramento para uso de dados pessoais no Brasil, que entrará em vigor em Fevereiro de 2020, regula tanto o mundo online quanto offline e será aplicável para a proteção de direitos individuais, ao mesmo tempo em que incentiva o desenvolvimento econômico e tecnológico da iniciativa privada por meio de regras claras e transparentes. Com a LGPD, o Brasil passa a fazer parte da lista de cerca de 120 países considerados adequados na proteção de privacidade e uso de dados.

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Ao mesmo tempo em que o GDPR e a LGPD são regulações extremamente necessárias, especialmente considerando a amplitude de sua aplicação e a não neutralidade da tecnologia, a criação de novas leis específicas a partir do surgimento de cada nova tecnologia não é possível – e sequer necessária. Isto é, algumas vezes, precisaremos sim de regulamentação específica. Outras, não.

A tecnologia sempre vai chegar primeiro que a regulação. E o Direito precisa lidar com esse fato. Temos garantias fundamentais expressas, além de um amplo arcabouço jurídico e consciência que a tecnologia não é neutra. Então, por muitas vezes estaremos falando mais da necessidade de novas formas de interpretar e aplicar o Direito em si, do que da necessidade de criação de novas regulações, para assim garantir a não violação de direitos constituídos.

Em resumo, não carecemos necessariamente de documentos legais para que o Direito possa atuar em prol de direitos individuais e coletivos diante da não neutralidade da tecnologia. Esperar a criação dos mesmos é ineficiente, especialmente considerando o tempo que leva até a aprovação – no caso da LGPD, passaram-se 8 anos de discussão.

Portanto, para apoiar nos efeitos, estaremos falando, por exemplo, de uma nova interpretação do direito à privacidade ou de uma nova forma de aplicação do sigilo de correspondência, para aplicá-lo, também, a correios eletrônicos. Não são necessárias, sempre, novas leis. São necessários, sim, juízes que inovem também seus modelos mentais, pois, afinal de contas, a inovação trazida com a tecnologia definitivamente não é apenas em sistemas.

O Direito só atinge sucesso quando aplicado à realidade da arquitetura social, que hoje é condicionada completamente ao desenvolvimento tecnológico.

Fica, então, o desafio e o papel primordial do Direito diante da não neutralidade da tecnologia: como o Direito pode incentivar a inovação ao mesmo tempo em que tutela direitos e garantias fundamentais, sem necessariamente criar novas legislações, dada a velocidade com que as transformações tecnológicas ocorrem?